“Persiste em ler, exortar e ensinar… Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina”
(1 Timóteo 4:13,16)
Durante muito tempo, a palavra doutrina foi um alicerce na vivência comunitária das Assembleias de Deus no Espírito Santo. Ela não era um conceito abstrato, nem tampouco uma linguagem rebuscada de gabinete pastoral. A doutrina era prática, cotidiana, encarnada. Era ensinamento bíblico aplicado à vida, transmitido com zelo nos cultos de doutrina que marcavam a semana de muitos irmãos e irmãs simples, mas profundamente compromissados com o Reino de Deus.
Era comum, até o final da primeira década dos anos 2000, vermos igrejas lotadas em plena quarta-feira ou quinta-feira à noite. Não era dia de campanha, nem de festa. Era noite de doutrina. Os crentes se reuniam como quem vai a uma escola espiritual. Ali, como numa oficina de Deus, o Espírito lapidava mentes, moldava corações, corrigia rumos. O culto de doutrina não era só um momento de ensino, era um momento de formação. E mais do que isso: era um momento de discipulado comunitário, onde a Palavra se fazia carne na vida dos irmãos.
Mas algo mudou.
Com o passar dos anos, o termo doutrina foi lentamente abandonado. Primeiro, por parecer pesado demais. Depois, por ser confundido com legalismo. Mais tarde, por ser associado à teologia acadêmica, distante da vida e fria para o coração. Muitas igrejas passaram a renomear seus cultos, trocando o “culto de doutrina” por expressões mais “leves”, como culto da palavra, culto de ensino, culto de edificação. A mudança semântica era, na verdade, sintomática. O problema não era só o nome. Era o conteúdo. Era o espírito do culto que estava se esvaindo.
Quando a doutrina deixou de ser ensinada, ela também deixou de ser praticada. Perdemos a ponte que ligava o ouvir ao fazer, o crer ao viver. A doutrina sempre teve essa função: articular a fé com a ética, a espiritualidade com a ação, a revelação com a conduta. E essa ponte, construída com tanto esforço por gerações de pastores e obreiros das décadas de 80 e 90, foi sendo, aos poucos, demolida.
Com a partida desses pastores, homens de Bíblia aberta e vida piedosa, uma nova geração assumiu os púlpitos. Muitos, com boa intenção, desejaram suavizar o tom, tornar o culto mais atrativo, mais acessível, mais moderno. Mas nesse processo, algo se perdeu. A autoridade pastoral foi sendo esvaziada. A pregação se tornou motivacional. A Palavra virou autoajuda. E o cajado, símbolo da condução e correção espiritual, passou a ser evitado, pois lembrava uma dureza que já não se tolera.
Hoje, há quase um receio de se falar em doutrina nos púlpitos. O termo tornou-se espinhoso. Para alguns, ele remete a um passado de proibições e repressão. Para outros, é simplesmente um vocábulo “fora de moda”. Em ambos os casos, o que se evidencia é o sequestro de uma herança. A doutrina foi silenciada. E com ela, se perdeu uma parte essencial da identidade assembleiana.
Mas o que acontece quando a doutrina é retirada do centro da vida da igreja?
O que acontece é um enfraquecimento da fé prática. Os crentes, sem ensino sólido, tornam-se vulneráveis ao modismo, à apostasia, ao sincretismo. A fé se torna líquida, como bem diagnosticou Zygmunt Bauman: uma fé que escorre entre os dedos, sem consistência, sem firmeza, sem raiz. O membro que antes era discipulado, hoje é tratado como consumidor. E ao menor desconforto, muda de igreja como quem muda de loja.
A doutrina forma. A ausência da doutrina deforma.
O culto de doutrina, naquele modelo antigo que hoje parece ultrapassado para muitos, tinha uma sabedoria que precisamos redescobrir. Era como uma aula pública, onde o pastor ensinava, o povo ouvia, e o Espírito Santo aplicava. Era ali que se aprendia a perdoar, a ser fiel, a viver com integridade, a criar filhos com temor, a enfrentar o mundo com firmeza espiritual. Era ali que a Palavra se tornava corpo.
E talvez seja esse o maior drama da igreja contemporânea: estamos perdendo o corpo. Perdemos o corpo da Palavra, o corpo da doutrina, o corpo da autoridade pastoral. Perdemos a corporalidade da fé, aquela que se manifesta em práticas concretas, visíveis, palpáveis.
A doutrina nunca foi um peso. Foi sempre um sustento. Ela era o esqueleto da vida cristã. Sem ela, a fé se torna uma gelatina espiritual: tremula, moldável, instável. A igreja precisa recuperar esse eixo. Precisa voltar a ensinar, sistematicamente, persistentemente, com coragem, com zelo, com profundidade.
Precisamos recuperar a doutrina. Não como um sistema opressor, mas como uma forma de viver que nasce da Palavra e frutifica na vida. Precisamos reabrir a escola da fé, reacender a chama do ensino bíblico, restaurar a ponte entre teoria e prática.
Porque doutrina não é apenas o que se ensina. É o que se vive.
E talvez, para isso, precisemos também reaprender a dizer, com humildade e ousadia:
“Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas, porque, fazendo isso, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem.” (1Tm 4:16)
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